quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Para além do ‘desenvolvimento sustentável’



Artigo de Israel Souza


O Projeto de Lei Complementar 30/2011, a partir do qual se forja o Novo Código Florestal brasileiro, mobilizou poderosas forças políticas, dividiu opiniões, suscitou violência e resistências. Do lado dos que dirigem criticas ao projeto, destaca-se a atuação do Comitê Brasil em Defesa das Florestas e do Desenvolvimento Sustentável, responsável pela elaboração do Manifesto em Defesa das Florestas e do Desenvolvimento Sustentável, já assinado por quase uma centena de organizações. Algumas delas de grande peso, como CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), ABI (Associação Brasileira de Imprensa), CONIC (Conselho Nacional das Igrejas Cristãs do Brasil), CTA (Centro dos Trabalhadores da Amazônia), CUT (Central Única dos Trabalhadores) etc.

Trata-se de uma atitude corajosa, a do Comitê. Sobretudo nesse momento em que aqueles que alertam para os riscos do projeto de crescimento econômico do governo brasileiro são tratados como “agentes” a serviço de interesses estrangeiros. Alguns são “demonizados”, até. Mas em nome de quê a resistência? Qual o alicerce? É realmente uma alternativa?

A primeira pergunta é de fácil resposta. A resistência é em nome da defesa das florestas e do “desenvolvimento sustentável”, como denota o nome do comitê. Por isso, consta no Manifesto: “É mais do que hora de o País atualizar sua visão de desenvolvimento para incorporar essa atitude e essa visão sustentável em todas as suas dimensões”. E ainda: “Devemos aproveitar a discussão do Código Florestal para avançar na construção do desenvolvimento sustentável”.

Salta aos olhos o fetiche de que é objeto o “desenvolvimento sustentável”, que, antes de ser “sustentável”, é “desenvolvimento” e é capitalista. Remendo novo em pano velho. Expressão de um sistema expansionista e de uma classe que, por paradoxal que seja, se guia pela perspectiva de curto prazo mas projeta seus interesses no infinito. Assim o “desenvolvimento”, uma das variantes que o capitalismo assumiu no pós-Segunda Guerra. Quando, na década de 1970, as mudanças climáticas e a depredação ambiental do “desenvolvimentismo” mostraram-se insofismáveis, foi posta em marcha uma “operação salvamento”.

Naquele momento, em que aflorava a “consciência ambiental”, a saída foi agregar o “sustentável” ao “desenvolvimento”. Dessa forma, o capitalismo ganhou uma ideologia poderosíssima, passando a operar encoberto pelo manto da “sustentabilidade”. Seguido pelo “sustentável”, o “desenvolvimento” passou a ser encarado não apenas como “ambientalmente correto”, mas como uma (para muitos, a única) força-projeto capaz de salvar a vida no planeta. Como que por força de uma “alquimia dos avessos”, o capital já não era a ameaça, e sim a salvação.

Empunhando a mesma bandeira clorofilada, os países centrais passaram a ditar aos países periféricos, por vias diversas, as políticas a serem adotadas no sentido de preservar a natureza. Lograram, assim, embotar a soberania destes sobre seus territórios e bens naturais. Em paralelo, intensificaram o processo de mercadificação da natureza e de espoliação das populações locais.

De maneira um tanto controversa, o Comitê aqui em foco reproduz e alimenta esse estado de coisas. Cala sobre a natureza intrinsecamente predatória do sistema do capital e trata a tudo como se fosse, basicamente, uma questão de escolha entre “boas” e “más” “opções desenvolvimentistas”. Todavia, é mister dizer que o “desenvolvimento sustentável” não é senão capitalismo. Como tal, ele está voltado para a produção de “valores de troca” e, portanto, para as necessidades do sistema e não das pessoas.

Como se pouco fosse postular a eternização do sistema, o Manifesto aqui citado chega a fazer apologia à competição intercapitalista: “o grande trunfo do Brasil para chegar a ser potência é a sua condição ambiental diferenciada”. Ora, e a competição não é, em larga medida, responsável pelos problemas ambientais que hoje nos ameaçam? Não é por causa dela que os diversos países lançam mão de todos os meios a seu alcance para se afirmar diante dos outros? E não é pelo mesmo motivo que os maiores poluidores do mundo se negam a assinar acordos que limitem a atuação de suas indústrias?

Parece tratar-se, como se vê, de deixar as questões de fundo, as que realmente interessam, intocáveis, impronunciáveis. Toma-se como quadro inelutável o atual sistema econômico. E a natureza é, ainda que de forma sutil, tratada como lenha a ser queimada no forno da locomotiva da acumulação capitalista.

Outra coisa digna de atenção no Manifesto é a crença no poder da ciência e da técnica. Em verdade, essa é a base em que ele se alicerça. Diz-se ali: “Tudo o que aqui foi dito pode ser resumido numa frase: vamos usar, sim, nossos recursos naturais, mas de maneira sustentável. Ou seja, com o conhecimento, os cuidados e as técnicas que evitam sua destruição pura e simples”.

É prova de ingenuidade depositar no “conhecimento” as esperanças de preservação das florestas. Não é preciso ir muito fundo para saber que o papel que ele desempenha em nossa sociedade é mais que ambíguo. Com efeito, alguns chegam mesmo a atribuir ao progresso técnico-científico parte considerável – senão a totalidade – dos problemas ambientais. No entanto, importa ter presente que é temerário atribuir à ciência e à tecnologia, isolando-as do contexto social em que são produzidas e apropriadas, a culpa pelo problema e/ou a responsabilidade pela solução esperada e necessária. Nem Adão nem Cristo. Sozinhas, elas não geraram a queda (problema) e, da mesma maneira, sozinhas elas não serão capazes de trazer a redenção (solução).

É louvável a resistência que, na defesa das florestas, o Comitê opõe ao Novo Código Florestal, congregando em torno de si dezenas de organizações. É lamentável, porém, que tal seja feito em nome do “desenvolvimento sustentável”. Isso atesta, eloquentemente, a fragilidade e a confusão que se abateram sobre as forças populares nos últimos anos.

A manutenção de qualquer forma de “desenvolvimento” (neo, sub, pós, sustentável etc.) é a manutenção do próprio capitalismo. Ou seja: é a manutenção de um sistema que, por natureza, gera desequilíbrio nas mais variadas esferas da vida: política, social, econômica, ecológica etc. A crise que hoje assombra a Europa e os EUA (e o mundo) bem mostra que os senhores do dinheiro preferem sacrificar nações inteiras a abrir mão do lucro. Nada indica que a natureza receberia tratamento diferenciado.

Muitos são os que têm alertado para a imprevisibilidade da crise em curso. O capitalismo parece realmente ferido de morte. Mas ameaça levar-nos a todos de roldão. Esse momento deve ser aproveitado não “para avançar na construção do desenvolvimento sustentável”, mas para buscar alternativas civilizacionais ao sistema econômico vigente. Nesse sentido, é imperativo ir para além do “desenvolvimento sustentável”. Ou, para dizer com István Mészáros, é preciso ir “para além do capital”.

Israel Souza é cientista Social, Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal do Acre (UFAC) e membro do Núcleo de Pesquisa Estado, Sociedade e Desenvolvimento na Amazônia Ocidental – NUPESDAO.

Artigo originalmente publicado no Blog Insurgente.

Colaboração de Sara Lima para o EcoDebate, 18/08/2011

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